Wednesday, May 21, 2014

Março 2014: Os olhos de Tirésias com Cristina Drios


O livro escolhido para a terceira tertúlia do clube literário foi Os olhos de Tirésias, de Cristina Drios, finalista do prémio Leya em 2012.
Tinha-o lido pouco depois de ser publicado porque a frase da capa me aguçara a curiosidade - "A vida extraordinária de um soldado português na Primeira Guerra Mundial". O pai da minha avó paterna integrou o CEP e eu, para além de me interessar por tudo o que me faça ter uma ideia mais clara do que foi a sua experiência, cada vez que ouço a minha avó contar episódios sobre o pai, reitero mentalmente o propósito vago de um dia investigar e contar a sua história.
Aquela frase na capa fez-me identificar prontamente com o livro, levando-me a querer averiguar até que ponto corresponderia ao meu "projecto" pessoal.
O livro revelou-se completamente diferente do que tinha imaginado: não é um livro sobre "a vida extraordinária de um soldado português na Primeira Guerra Mundial", quando muito será sobre a vida de uma personagem extraordinária que, por acaso, passou pela Primeira Guerra Mundial; também não é a história da experiência de guerra do avô da autora, é um romance (um bom romance) sobre um avô inventado de uma narradora inventada.
Dito isto, agradeço àquele engano ter-me levado a conhecer este livro e esta autora. Apesar de não ser o livro que esperava, gostei muito do livro que ele é efectivamente.

Eis parte do comentário que fiz na altura:
Para além do estilo próprio da escritora, que nos leva desde uma aldeia perdida na serra da Lousã até aos cenários de uma Flandres em guerra, depois de uma passagem breve por Lisboa, com uma atenção constante ao pormenor que nos faz sentir que viajámos mesmo para aquele espaço/tempo, gostei também da galeria de personagens e sobretudo das inúmeras referências culturais e históricas que vão aparecendo naturalmente no romance. A título de exemplo, a autora inventou um pai a Mateus Mateus, que vive na serra da Lousã, descende de um soldado francês e é neveiro, o que lhe permite referir levemente as invasões francesas e descrever uma actividade completamente obsoleta e quase desconhecida actualmente.
Em resumo, um romance-estreia que me convenceu e uma nova autora cuja obra vou querer acompanhar.

Reli o livro para a tertúlia e gostei muito da conversa que se proporcionou com a Cristina Drios, que é uma simpatia.
A autora começou por referir que não pegou no livro desde que acabou a última revisão, antes de ser publicado, e que por isso nós muito provavelmente saberíamos mais sobre o livro do que ela própria.

Falou-se do título, claro. Tirésias, a figura mitológica cega e vidente, pareceu-lhe o nome apropriado para esta história com várias personagens com o dom da premonição. A editora não gostou muito e insistiu que a capa tivesse pelo menos um subtítulo que dissesse algo mais sobre o conteúdo e atraísse mais leitores. Daí aquela frase um pouco enganadora da capa.
A autora contou que, na altura em que o livro saiu, também foi editada uma nova tradução da obra de teatro Les Mamelles de Tirésias de Apollinaire, em português As mamas de Tirésias. Ela não conhecia este livro e, quando o viu pela primeira vez numa livraria, junto do seu acabado de publicar, sentiu-se "roubada" do seu título perfeito e original... :)

Depois falou-se do cenário principal do livro - a Primeira Guerra Mundial - e de como faltam trabalhos de ficção nesse contexto enquanto o da Segunda Guerra é utilizado em inúmeras obras.
Essa foi uma das razões que a levou a escolhê-lo para colocar as suas personagens a interagir. Como quem leu o livro percebeu, não se trata de um relato histórico, mas a autora usou episódios da guerra e algumas personagens reais (como um certo cabo austríaco chamado Adolf e um futuro escritor de nome Erich) para enquadrar e desenvolver o enredo.
Uma questão que os leitores levantaram foi se ainda assim existiu alguma foto de um qualquer avô. Ela disse que não, que não teve nenhum familiar no CEP, e fez questão de frisar que ela não é a neta narradora.

Mas, se a história principal é inventada, todos os locais do livro são reais, desde a casa da aldeia da Lousã, inspirada numa que a própria autora possui, até à casa "Château Blanc", em Wervicq-Sud, onde as personagens do livro se reúnem. Esta casa foi mesmo requisitada para hospital de campanha durante a guerra e é verdade que Hitler esteve lá internado alguns dias, diagnosticado com cegueira histérica, antes de ser transferido para outro local.
Outra passagem verídica sobre o cabo Adolf é a caminhada de 24km, 12km em cada sentido, para ir comprar aquele livro específico sobre Berlim!

A autora explicou um pouco da génese do livro.
A ideia germinou precisamente na casa da Lousã - foi aí que nasceu a personagem Mateus Mateus que a autora resolveu levar até uma Flandres em plena Grande Guerra.
Depois, na guerra, quis juntar várias pessoas de diferentes nacionalidades e, para conseguir reunir toda a gente na mesma casa, lembrou-se desse expediente de dar o dom da vidência a algumas personagens e de colocar um médico alemão a querer explorar isso a seu favor. Ela não sabe se na Primeira Guerra isto foi utilizado mas em relação à Segunda há relatos de como eram consultadas pessoas com dons paranormais antes de decidir os cursos das operações.
Só mais tarde surgiram os capítulos na voz da neta (que a editora insistiu em colocar em itálico para não baralhar demasiado o leitor... :)). Isto aconteceu porque a autora sentiu a necessidade de trazer esta história de há cem anos para o presente, tornando-a mais próxima de um leitor actual.
E aqui, apesar de a escritora dizer não ser a neta, é verdade que se serviu da sua voz para fazer comentários com os quais se identifica.
Houve dois focados na tertúlia.
O primeiro está relacionado com a escrita do romance, quando a neta desabafa que a escrita é difícil, que os personagens são esquivos e não tomam as rédeas da história fazendo-a desenvolver-se sozinha e guiando a mão da escritora, como outros escritores afirmam que acontece.
O outro é um comentário sobre advogados, que é a profissão da autora mas não da narradora. Eu também tinha ficado surpreendida com aquele comentário nada abonatório da narradora em relação à própria autora. A autora riu-se e confirmou que foi uma espécie de auto-crítica, que na verdade ela não é advogada por vocação mas tem de ganhar a vida de alguma forma.

Os nomes das personagens não foram escolhidos à toa e reflectem muitas vezes uma determinada característica que as identifica.
O rapazinho de nariz tronchudo tem o apelido Lebecq.
O soldado inglês que é albino tem um nome a condizer - Alvin.
A enfermeira francesa Georgette tem o mesmo nome da operação que desbaratou as linhas defendidas pelo contingente português - como ela derrubou as barreiras emocionais de Mateus Mateus, acrescento eu.
[Falando de nomes, fiquei com uma dúvida que não cheguei a esclarecer: porque é que o futuro autor Erich Maria Remarque se apresenta a Émile Lebecq como Erich Kramer?
Segundo a Wikipedia, Erich Paul Remark mudou o nome para Erich Maria Remarque quando publicou A oeste nada de novo, para se dissociar de um livro anterior (Die Traumbude). Mudou Paul para Maria em memória da mãe e Remark para Remarque porque esta seria a grafia original do apelido, alterada para Remark pelo avô, no séc. XIX.
De acordo com a mesma fonte, o apelido Kramer - Remark invertido - terá sido inventado pela Alemanha Nazi, quando o autor foi perseguido e viu os seus livros proibidos e queimados, para o desacreditar, insinuando que era um nome com raízes judaicas francesas que ele tentava esconder.
Se a Cristina Drios chegar a ler isto, pode esclarecer-me por favor? Houve alguma razão para lhe chamar Kramer no livro? Sabe de fontes mais fidedignas algo mais sobre esta história? Ou foi simples confusão? Obrigada :)]

Alguém referiu que notou a influência da língua francesa na sintaxe do livro. A autora disse que frequentou o Liceu Francês dos 4 aos 18 anos, onde todas as disciplinas eram leccionadas em Francês, mesmo a Matemática ou as outras línguas estrangeiras. Ela pensa e sonha nas duas línguas e é natural que exista essa influência, ainda que nunca se tivesse apercebido dela.

Os olhos de Tirésias é o segundo livro da autora. O primeiro, intitulado Histórias Indianas, reúne um conjunto de contos inspirados numa viagem que a autora fez à Índia e venceu o Prémio Literário Cadernos do Campo Alegre «Novo Autor, Primeiro Livro» em 2012.

Neste momento, o próximo livro já está mais ou menos encaminhado e, se não mudar nada entretanto, podemos esperar um enredo passado em Itália, no início do séc. XVII, com uma personagem histórica chamada Caravaggio. Tal como em Os olhos de Tirésias, todos os cenários são reais e correspondem a locais que a autora já visitou. O interesse por Caravaggio começou numa viagem a Malta onde a autora viu alguns dos seus quadros. Ao olhá-los sentiu que os quadros a chamavam para dentro deles, como se não houvesse separação física entre a tela e o observador, como se este fizesse parte da própria cena retratada. Para além deste fascínio pela obra de Caravaggio, o facto de ele ter tido uma vida rica em eventos aproveitáveis literariamente, também pesou na decisão de o incluir no livro. :)


Próximo livro: Revolução Paraíso de Paulo M. Morais.

No comments:

Post a Comment