Tuesday, May 27, 2014

Abril 2014: Revolução Paraíso com Paulo M. Morais


O livro Revolução Paraíso acompanha um conjunto de personagens fictícias na zona do Cais do Sodré, em Lisboa (Rua dos Remolares, Rua Nova do Carvalho, Praça e Igreja de S. Paulo, etc.), entre Maio de 1974 e Dezembro de 1975.
As figuras principais são o proprietário e os trabalhadores de uma gráfica, que se transforma em redacção de um novo semanário, logo após o 25 de Abril. Deste modo, a par do dia-a-dia destas personagens, vamos tendo também uma perspectiva mais global dos acontecimentos atribulados desse período, através das notícias que elas escrevem ou que lêem noutros jornais.
Esta parte está bastante completa e deixa-nos a pensar que o autor deve ter tido um trabalho enorme de pesquisa da imprensa e dos arquivos da Rádio e da RTP da época. No entanto, na tertúlia ficámos a saber que ele teve a vida facilitada porque herdou da avó uma série de pastas com recortes de jornais com as notícias que ela considerou importantes na altura - o arquivo vai desde o 25 de Abril até ao início da década de 80.
Aliás foi esta herança que o levou a escrever o livro em primeiro lugar, para aproveitar de alguma forma o trabalho meticuloso da avó e o manancial de informação que ela guardou. É claro que não pôde incluir tudo o que gostaria ou teria escrito um livro com mais de mil páginas.
Por outro lado, ele podia ter pegado nos recortes e escrito a história das elites que estiveram por trás dos acontecimentos, mas interessava-lhe mais perceber de que forma esses acontecimentos influenciavam o quotidiano do cidadão comum, daí ter situado o romance num contexto de bairro, com a tasca, os cafés, as lojas e o prostíbulo (que existiu mesmo, na “Casa Conveniente”, hoje um teatro).
Enquanto a avó recortava jornais, o avô apontava as frases que iam sendo escritas nas paredes das ruas, fazendo uma compilação que o autor também aproveitou para o livro.

Um leitor comentou que se percebia que o livro tinha sido escrito por alguém que não viveu os acontecimentos, porque conseguiu fazer um relato completamente desapaixonado e distante. Ele próprio tinha 17 anos na altura e tem a impressão que viveu várias vidas nesse ano e meio...
O autor corroborou (nasceu em 1972) e disse que também fez questão de ser o mais imparcial possível: o leitor deve chegar ao fim do livro sem saber dizer o que é o que o Paulo M. Morais pensa sobre tudo aquilo.

Para além do plano ficcional e do seu contexto histórico, o livro tem um terceiro plano, que podemos classificar de onírico e que é protagonizado pela namorada inventada do linotipista da gráfica, composta de letras recortadas a partir de palavras impressas com erros propositadamente. A certa altura, esta "mulher de letras", chamada Eva, toma vida própria e começa a contar-nos como é visitada pelos principais protagonistas dos acontecimentos pós-revolucionários e a relatar-nos as discussões que eles têm entre si sobre quem ficará com ela e que destino ela deve ter. Primeiro Spínola e Otelo, depois Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Pinheiro de Azevedo, os visitantes vão-se sucedendo e substituindo ao sabor da evolução dos acontecimentos históricos reais.
Um ponto alto destas visitas é o debate Soares-Cunhal. Enquanto o debate real durou algumas horas e foi transmitido em directo pela RTP, o do romance foi reinventado como um braço-de-ferro entre os dois líderes partidários, à mesa do apartamento de Eva, enquanto esgrimem argumentos sobre o destino que lhe deve ser dado. O braço-de-ferro termina sem que ninguém vença ou convença o adversário.

Esta parte do livro foca a utopia da revolução de Abril, "encarnada" por Eva, e o que aconteceu a essa utopia logo nos primeiros meses pós-revolução.
O autor disse que a ideia de Eva já era um projecto antigo e que ao começar o livro tinha pensado dar-lhe mais relevância e torná-la o eixo central da narrativa, mas depois as outras personagens foram tomando protagonismo e ele teve que repensar o livro e inclusivamentle alterar o título que já tinha escolhido.

Falta ainda mencionar que Eça de Queirós é uma presença constante no livro: o proprietário da gráfica e o seu melhor amigo são fãs confessos do escritor e não é por acaso que usam muitas expressões tiradas dos seus romances, chamam "Ramalhão" ao edifício onde moram e trabalham, fundam um semanário a que dão o título de "Revista de Portugal" e, de uma forma geral, parecem um Carlos da Maia e um João da Ega reencarnados e envelhecidos... Aliás, de certo modo, a história destes dois amigos d'Os Maias tem paralelismos com a revolução de Abril, na forma como começam cheios de projectos e de ideologias e acabam o livro acomodados e conformados com a realidade.

O autor é jornalista e o seu primeiro emprego foi precisamente numa gráfica de vão de escada como a retratada no livro. Ele admite que o próprio dono da gráfica tem traços inspirados no seu primeiro patrão.

Ele também disse que não pretendeu escrever um livro para ensinar história a ninguém, mas a verdade é que se aprende muito com a sua leitura. Pelo menos para pessoas da minha geração (nasci em 1977) e mais novas, que não viveram os acontecimentos e que têm uma imagem muito nebulosa do que foi o PREC, o livro consegue transportar-nos para lá e pôr-nos, só para dar um exemplo, a assistir à reportagem em directo na televisão do golpe falhado de Spínola a 11 de Março de 1975. Gostei muito dessas espreitadelas ao passado e gostei em particular do editorial escrito pelo proprietário da gráfica sobre as primeiras eleições livres, a 25 de Abril de 1975, um texto que ainda destila utopia e esperança no futuro e que imagino ter sido inspirado num editorial real da altura.

Resta falar do ambiente da tertúlia. Não éramos muitos, talvez por ter calhado a meio das férias escolares da Páscoa, mas foi muito interessante porque, para além do livro, falou-se sobretudo da Revolução e do PREC e, como os participantes são de faixas etárias e origens muito variadas, a partilha de experiências e memórias pessoais foi muito enriquecedora.

Para terminar, deixo aqui um episódio que é referido no livro e que eu não conhecia: as declarações do então primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo quando fica farto dos sequestros ao Parlamento e decide suspender o governo.
-"Não gosto de ser sequestrado. É uma coisa que me chateia, pá!"
Podem ver no youtube...


Próximo livro: O cónego de A. M. Pires Cabral.

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